Dieta hipocalórica e remissão de diabetes tipo 2

Com a obesidade e o sedentarismo entre seus principais fatores de risco, a diabetes tipo 2 afeta atualmente 422 milhões de adultos em todo o mundo. Há, nesse grupo, uma crescente participação de pessoas com menos de 40 anos, que acabam tendo uma maior exposição a doenças relacionadas e ao risco de complicações crônicas derivadas da doença.

As diretrizes atuais para o tratamento do diabetes tipo 2 concentram-se fortemente em tratamentos com medicamentos para reduzir a glicose no sangue e os riscos elevados associados a doenças cardiovasculares.

Porém, estudos observacionais documentam a gradual piora do controle glicêmico com necessidade de um número crescente de medicamentos antidiabéticos. Cerca de 10 anos após o diagnóstico, até 50% das pessoas podem precisar de tratamento com insulina para obter o controle adequado da glicose no sangue.

Esse cenário reforça a importância da busca de opções de intervenção que ataquem o mecanismo do diabetes tipo 2 e possam induzir a remissão da doença. Como o diabetes tipo 2 está fortemente relacionado ao estilo de vida (alimentação, sedentarismo, etc), ganho de peso e ao acúmulo excessivo de gordura no fígado e no pâncreas, estratégias que combatam esses fatores vêm sendo cada vez mais investigadas.

A patogênese do diabetes tipo 2

 

A fisiopatologia do diabetes tipo 2 tem sido considerada como tendo dois componentes distintos: começa com a resistência à insulina (os tecidos perdem sua capacidade de responder normalmente à insulina, levando a hiperinsulinemia e hiperglicemia) e a disfunção nas células β pancreáticas, células responsáveis pela produção e liberação de insulina. A resistência muscular à insulina é a primeira característica detectável que indica risco aumentado de desenvolver diabetes tipo 2.

O foco predominante da pesquisa no tratamento da diabetes tipo 2 tem sido, portanto, identificar maneiras mais eficazes de melhorar a resistência muscular à insulina com drogas (por exemplo, glitazonas) ou com dieta e exercícios.

Por outro lado, estudos indicam que a disfunção das células β tende a ser menos passível de terapia. Dados do United Kingdom Prospective Diabetes Study mostraram que, no momento do diagnóstico, a função das células β, embora estimada por índices substitutos, já havia diminuído para cerca de 50% do normal, e continua a diminuir linearmente, independentemente dos tratamentos farmacológicos.

Novas hipóteses

 

Cerca de uma década atrás, a importância do acúmulo de gordura no fígado na determinação da resistência hepática à insulina tornou-se clara e a ligação com o diabetes tipo 2 foi reconhecida. Uma vez que o grau de sensibilidade à insulina determina a eficácia da regulação da produção de glicose no fígado e, consequentemente, a glicose plasmática de jejum, o teor de gordura hepática parece ser um fator central na fisiopatologia do diabetes. A observação do retorno muito rápido à valores de glicemia normais em pessoas com diabetes tipo 2 após cirurgia bariátrica levou a formulação da hipótese do ciclo duplo para explicar a potencial reversão nutricional do diabetes tipo 2.

 

 

 

De acordo com essa hipótese, o excesso de calorias ao longo dos anos leva ao acúmulo de gordura no fígado e, portanto, à resistência à insulina hepática. Como o fígado produz glicose continuamente, apenas restringido pela ação da insulina, a resistência à insulina hepática induzida pela gordura causa um aumento na glicose plasmática em jejum e desencadeia um aumento na liberação de insulina. Como os níveis mais altos de insulina estimulam a conversão de carboidratos em gordura no fígado, inicia-se um ciclo vicioso.

Além disso, afirma-se que o excesso de gordura no fígado causa aumento da exportação de gordura para todo o corpo, que pode ser absorvida por muitos tecidos, incluindo as células ß pancreáticas. Sabe-se que a gordura diminui a produção aguda de insulina, eventualmente causando aumento dos níveis de glicose pós-refeição. Por sua vez, esse processo resultaria em níveis mais altos de insulina e uma maior tendência de armazenar o excesso de carboidratos como gordura hepática.

Os ciclos gêmeos continuariam até um ponto em que as células ß se tornassem incapazes de produzir insulina suficiente para compensar a resistência à insulina, resultando em diabetes.

É importante ressaltar que, de acordo com a hipótese, os ciclos gêmeos podem ser revertidos se o excesso de gordura for removido.

Perda de peso como opção de tratamento

 

A cirurgia bariátrica tem dominado as discussões sobre a remissão do diabetes tipo 2 como a forma mais eficaz de produzir grande perda de peso. No entanto, essa opção tem um alto custo financeiro e o risco de complicações a longo prazo, como hipoglicemia pós-prandial, e deficiências de micronutrientes que restringem a adesão a esse tipo de tratamento.

Os mecanismos essenciais por trás da cirurgia bariátrica são a perda de peso e a diminuição do conteúdo de gordura corporal, ao invés de um efeito cirúrgico direto. Assim, a indução de um balanço energético negativo, pode ser uma alternativa para se obter esses resultados.

Com base nesse raciocínio, pesquisadores do Reino Unido, investigaram se a perda de peso suficiente para atingir a remissão pode ser alcançada em muitos indivíduos. Para isso, aplicaram um programa estruturado de controle de peso baseado em evidências, fornecido em uma comunidade, por equipes de cuidados primários de saúde.

A pesquisa

 

O estudo aberto, randomizado por cluster, teve a participação de 298 indivíduos com idade entre 20 e 65 anos e diagnóstico de diabetes tipo 2 nos últimos 6 anos. Nenhum dos participantes estava recebendo insulina e o índice de massa corporal dos participantes encontrava-se entre 27 kg/m² e 45 kg/m².

A intervenção consistiu na retirada dos medicamentos antidiabéticos e anti-hipertensivos assim como na substituição total da dieta por uma com valores calóricos entre 825 kcal/dia e 853 kcal/dia. Após 3 a 5 meses, a dieta regular foi reintroduzida gradualmente (2 a 8 semanas), e foi fornecido suporte estruturado para manutenção da perda de peso a longo prazo.

Uma diferença desse estudo é que as intervenções e o acompanhamento foram realizados em condições da vida real, por enfermeiras ou nutricionistas das clínicas que já acompanhavam esses pacientes, e não pelos profissionais que conduzem os estudos.

Resultados

 

A remissão do diabetes, considerada como o valor da hemoglobina glicada menor do que 6,5% após 2 meses sem uso de medicamentos anti-diabéticos, foi observada em 46% dos pacientes do grupo intervenção. Aos 12 meses, foi registrada perda de peso superior a 15 kg em 24% dos participantes do grupo de intervenção. A remissão variou de acordo com a perda de peso em toda a população do estudo, sendo observada em maior proporção nos grupos com maior perda de peso, enquanto que não foi registrada em nenhum dos 76 participantes que ganharam peso durante o estudo.

Em Understanding the mechanisms of reversal of type 2 diabetes, os pesquisadores elencaram as alterações percebidas por estudos em pacientes com diabetes tipo 2 que se submeteram a dietas de perda de peso.

 

 

 

Manutenção da remissão a longo prazo

 

Aos 12 meses, a remissão do diabetes foi alcançada em 68 (46%) de 149 e 53 (36%) de 149 aos 24 meses no grupo de intervenção, fora de todas as drogas antidiabéticas. As pessoas que tiveram reversão do diabetes tipo 2 depois da perda de peso permaneceriam livres do diabetes se não houvesse a recuperação de peso.

Para alcançar durabilidade e, portanto, uma aplicabilidade clínica mais ampla, é necessária uma abordagem nutricional e comportamental. O objetivo é alcançar uma alimentação isocalórica de longo prazo, após a fase aguda de perda de peso.

A abordagem usada no estudo difere de outros tratamentos de controle de peso em seu design focado na necessidade de manutenção a longo prazo da perda de peso. Segundo os pesquisadores, a flexibilidade individual é importante para otimizar os resultados individuais. As durações das fases de perda de peso e reintrodução alimentar variaram dentro de limites razoavelmente amplos

Eles reportam que a necessidade de flexibilidade durante a fase de substituição total da dieta foi em grande parte por razões sociais. E que, durante a reintrodução alimentar, a flexibilidade permitiu que os indivíduos se adaptassem por mais tempo, se necessário, aos novos hábitos alimentares normais. Métodos de mudança comportamental foram incorporados na fase de manutenção da perda de peso, incluindo elementos da terapia cognitivo-comportamental. Os participantes do grupo de intervenção foram aconselhados a continuar suas atividades diárias habituais.

Novo paradigma

 

Quando nos primeiros anos após o início do diabetes, a remoção do excesso de gordura no fígado e no pâncreas, por meio de perda de peso intensiva e manutenção de uma dieta saudável, pode, em muitos casos, levar à normalização da produção hepática de glicose, à melhora na sensibilidade à insulina e à possível diferenciação das células β. Nesse cenário, o diabetes pode ser revertido. Essa constatação representa uma mudança de paradigma na compreensão do diabetes tipo 2, para o benefício de nossos pacientes.

Lean M, et al. Primary care-led weight management for remission of type 2 diabetes (DiRECT): an open-label, cluster-randomized trial. 2017 Dec 05. doi: 10.1016/S0140-6736(17)33102-1.

Taylor R, et al. Understanding the mechanisms of reversal of type 2 diabetes. Lancet Diabetes Endocrinol 2019. 2019 May 19. doi: 10.1016/S2213-8587(19)30076-2; PMID: 31097391